sábado, 26 de julho de 2014

Lideranças fortes, unipessoais e assentes no mérito

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do autor
«É preciso perceber a mitificação que existia à volta de Ricardo Salgado, em muitos membros da comunidade mas sobretudo dentro do Banco Espírito Santo. Os quadros falavam de Salgado como de um banqueiro predestinado, um líder de que se orgulhavam, um homem que estaria sempre acima dos desafios e dos seus pares.» (Revista do Expresso - 19/7/2014)
Era, por conseguinte, aquilo a que se chama uma liderança forte, unipessoal, resultante de inquestionável mérito demonstrado por evidências.

«De alguma maneira, a situação foi semelhante no BCP aquando da crise de Jardim Gonçalves: era venerado pelos seus quadros, a incredulidade foi semelhante.» (Revista do Expresso - 19/7/2014)
É outro exemplo daquilo a que se chama uma liderança forte, unipessoal, resultante de inquestionável mérito demonstrado por evidências.

Oliveira e Costa, do BPN, João Rendeiro, do BPP,  Henrique Granadeiro, da PT, são outros exemplos daquilo a que se chama uma liderança forte, unipessoal, resultante de inquestionável mérito demonstrado por evidências. A lista poderia continuar.

Todas estas lideranças, para além de terem em comum o facto de serem fortes, unipessoais e resultantes de inquestionável mérito assente em evidências, têm outro elemento em comum: estão sob a alçada da justiça (ou virão a estar, como será certamente o caso de Granadeiro). Sobre estes líderes fortes, unipessoais e meritórios impendem acusações de elevada gravidade. Mas para além das múltiplas violações da lei, as consequências da sua gestão ruinosa afectaram e estão a afectar a vida de milhões de portugueses e de estrangeiros.
Todavia, durante anos, todas estas lideranças, para além de terem sido, do ponto de vista social, exemplos dos designados «bem sucedidos na vida», daqueles que a sociedade deveria venerar e seguir; estas lideranças eram também, e principalmente, expoentes máximos de um modelo de gestão e protagonistas de uma ideologia. Da ideologia que fez e faz precisamente do modelo de gestão assente nas ditas lideranças fortes e unipessoais a garantia de eficácia, de competitividade e de meritocracia. Da ideologia que apresenta este modelo como a fusão ideal entre a gestão focalizada nos resultados e a (suposta) premiação do mérito.
As consequências desta ideologia não seriam graves se elas se restringissem a um nicho social privado que quisesse viver segundo esta crença. Mas, infelizmente, as coisas não se passam assim: por um lado, o âmbito desta crença não está circunscrito a um nicho, pelo contrário, tem-se alargado a grande parte da sociedade, que ingenuamente tende a vê-la como uma «verdade natural»; por outro lado, o que acontece no domínio privado interfere sempre, em maior ou menor grau, com o domínio público, o que deveria retirar àquele a possibilidade de viver em «roda livre»; por último, mas não menos importante, esta ideologia conseguiu exportar o seu modelo de gestão para o sector público. Deste modo, escolas, hospitais e empresas públicas passaram, desde há alguns anos, a ter como arquétipo de gestão a designada liderança forte, unipessoal e (alegadamente) assente no mérito. O sector público foi tomado pelo mito ideológico deste modelo de gestão, assim como pelos valores retrógrados que lhe estão associados.
As consequências do domínio desta ideologia na sociedade estão a ser terríveis a todos os níveis — desde o financeiro e económico até ao educativo e cultural.  E apesar da realidade nos mostrar todos os dias a incompetência deste modelo e a falsidade dos pressuspostos em que assenta, mantemo-nos embevecidos na esperança naïf que depositamos nas lideranças unipessoais e na crença provinciana de que o sector público deve seguir os modelos do sector privado.
O escrutínio dos factos e dos argumentos e a consequente alteração dos comportamentos continuam a ser relegados em proveito ou dos interesses instalados ou de credulidades mais ou menos rústicas.