quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Acerca da crise e da corrupção (10)

«O paradigma mais vergonhoso da promiscuidade entre os grupos económicos e o poder político é constituído pelas tristemente célebres parcerias público-privadas (PPP). São disso exemplos alguns hospitais, redes de águas e saneamento, as então auto-estradas sem custo para o utilizador (SCUT), a renovação de escolas através da empresa Parque Escolar ou até o Campus de Justiça em Lisboa. Neste modelo de negócio, os riscos correm sempre por conta do Estado, mas os lucros são garantidos aos privados através de rendas pagas ao longo de décadas. Desta forma, as PPP hipotecam de forma criminosa os impostos de várias gerações.
Este processo de atribuição de rendas a privados através de mecanismos públicos, esta apropriação de recursos públicos por grupos económicos privados, iniciou-se já nos governos de Cavaco Silva. A primeira de todas as PPP foi a ponte Vasco da Gama. Começou aqui uma sequência de negócios infernais, em que invariavelmente os riscos são socializados e os lucros privatizados.
A construção da ponte Vasco da Gama foi, já então, um negócio ruinoso para o Estado português. A participação privada na nova travessia do Tejo nasceu de um embuste: a tese de que o Estado não teria dinheiro para construir a infra-estrutura. Assim, recorreria ao apoio dos privados, a quem mais tarde pagaria determinadas rendas. Um logro gigantesco. Os privados entraram, à cabeça, com apenas um quarto dos cerca de 900 milhões de euros em que orçava o investimento da travessia sobre o Tejo. O restante foi garantido pelo Estado português, através do Fundo de Coesão da União Europeia (36%), da cedência da receita das portagens da ponte 25 de Abril (6%) e por um empréstimo do Banco Europeu de Investimentos (33%) avalizado pelo Estado português. O verdadeiro investidor foi, de facto, o Estado português, que assim garantiu a privados um rendimento milionário ao longo de anos. E, em 2010, as receitas das portagens eram quase 75 milhões de euros. Ao mesmo tempo que garantiram estas elevadas rendas, os privados eliminavam a concorrência, pois garantiam, nos termos do contrato, um monopólio. Ninguém poderá, nos próximos anos, construir uma nova travessia rodoviária no estuário do Tejo sem lhes pagar o respectivo dízimo.
Para piorar a situação, o Estado negociou ao longo de anos sucessivos acordos para a "reposição de reequilíbrio financeiro" da empresa concessionária, através dos quais se foram concedendo mais vantagens aos privados. Ainda antes da assinatura do contrato de concessão, já o Estado atribuía uma verba de 42 milhões de euros à Lusoponte para a compensar por um aumento de taxas de juro. Mas os benefícios de taxas mais baratas, que se seguiram imediatamente, esses reverteram sempre e apenas para a Lusoponte.
Ainda sem razão aparente, o Estado prolongou a concessão por sete anos, provocando perdas que foram superiores a mil milhões. Só há agora uma solução justa: a expropriação da ponte Vasco da Gama, devolvendo aos privados o que lá investiram. As portagens chegam e sobram para tal. Não se pode é continuar a permitir que, por pouco mais de duzentos milhões de euros, uns tantos senhores sejam donos de uma ponte que não pagaram, recebam as portagens de duas pontes, a Vasco da Gama e a 25 de Abril, e dominem o estuário do Tejo por toda uma geração. Se algum outro grupo quiser construir uma nova travessia rodoviária, terá de indemnizar a Lusoponte. Ou adquiri-la!»
Paulo Morais, Da Corrupção à Crise — Que fazer?, Gradiva.