sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Exames nacionais - apontamentos (13)

Um quarto argumento a favor da proliferação dos exames nacionais apresentado por Nuno Crato, no livro O 'Eduquês' em Discurso Directo (2006), é um argumento muito utilizado e que consiste no seguinte: «[...] Os exames podem ser bem feitos ou mal feitos. Podem privilegiar a memorização ou podem privilegiar o raciocínio. Podem dirigir-se à solução mecânica de exercícios ou podem dirigir-se à aplicação criativa de técnicas e conceitos.» (p.49). Conclui-se daqui que o problema não está nos exames, o problema está apenas em saber ou não saber fazer exames bem elaborados.
Desidério Murcho desenvolveu, no blogue Crítica, na mesma altura da publicação do livro de Crato, a mesma argumentação: «Como é evidente, é possível fazer exames bons e exames maus. Pode-se fazer exames para o "decoranço" [...] ou para a compreensão crítica e a expressão de competências fundamentais [...]», para chegar à mesma conclusão: o problema não está nos exames, o problema está apenas em saber ou não saber fazer exames bem elaborados.
O argumento é pois o mesmo e é repetido até à exaustão como tentativa de resposta à crítica que denuncia as múltiplas deficiências e limitações deste tipo de provas. Vale a pena agora observar duas particularidades do raciocínio exposto. 

i) Sendo utilizado para defender a proliferação dos exames, este argumento constitui, na verdade, a admissão das fragilidades destas provas. Não seria necessário insistir sistematicamente neste ponto se ele não fosse relevante. E ele é relevante porque é reconhecido de forma unânime (pelos que criticam e pelos que defendem a proliferação dos exames nacionais) que há exames que são «mal feitos». O problema que se coloca é que os exames «mal feitos» não são ocasionais, o problema é que há sempre, anos após ano, exames «mal feitos». Ora, este facto que nos revela a existência de uma constante (provas «mal feitas» todos os anos) deveria ser razão suficiente para os defensores dos exames a qualquer preço ponderarem a possibilidade de a causa dos «erros» sistemáticos ocorridos na elaboração dos exames ser a própria natureza da prova e não, alegadamente, fortuitas falhas dos seus autores, por distracção ou incompetência. Como sabemos, a realidade não tem a vocação de se adaptar aos nossos desejos — o que neste caso significa dizer que as contradições conceptuais de que um exame nacional enferma nunca poderão fazer dele uma prova que avalie mais do que mediocremente,  por mais que se deseje o contrário.

ii) De modo paradoxal com o que os factos revelam, Crato, Murcho e todos os que utilizam este argumento parecem querer sugerir-nos que a elaboração de exames «bem feitos» é algo do domínio do óbvio e que se resume a saber fazer provas para a «compreensão crítica», para a «expressão de competências fundamentais» e que «privilegiem o raciocínio» e a «aplicação criativa de técnicas e conceitos». Ora, isto que nos é apresentado como sendo do domínio do óbvio é desmentido sistematicamente pelos factos, se tivermos presente a lista infindável de erros e de provas «mal feitas». A perplexidade aumenta e o problema ainda se torna maior quando nos é revelado como se faz uma prova e nos são dados exemplos concretos do que é um item mal formulado e do que é um item bem formulado (as «perguntas/questões» das provas de avaliação passaram, na linguagem modernaça, a ser designadas de «itens»...). No texto acima referido, Desidério Murcho procede à elucidação: por exemplo, na Filosofia, um item feito para o «"decoranço"» será «Defina argumento dedutivamente válido»; e um item feito supostamente para a «compreensão crítica e a expressão de competências fundamentais» será «Poderá um argumento dedutivamente válido ter uma conclusão falsa? Porquê?»
Nestas como em outras situações, é quando se desce ao concreto que a verdade vem ao de cima. De facto, no exemplo que é dado, a segunda formulação da pergunta pode ser considerada precisamente da mesma natureza da primeira formulação, isto é, uma pergunta feita para o «decoranço». Se um professor explica na aula (e deve-o fazer) por que razão um argumento dedutivamente válido pode ter uma conclusão falsa, e o aluno «decora» essa explicação, ele responderá «sim» no exame e, de seguida, «despejará» o que decorou da explicação do professor (ou do manual). E, de repente, aquilo que, pelas palavras de Murcho, parecia óbvio deixa de o ser: aquilo que parecia ser obviamente um item «bem feito» passa a ser um «item mal feito», seguindo o critério do mesmo Murcho. (Não é o caso, mas, em várias situações, o exercício do «decoranço» não está apenas dependente da forma como um item/pergunta é elaborado/a, está igualmente dependente da forma como um conteúdo foi ensinado-aprendido.)

O mito dos exames «bem feitos», não passa disso mesmo — de um mito. É claro que há provas de avaliação mais bem feitas do que outras, mas as provas com a natureza de um exame nacional ou são assumidamente provas muito limitadas no seu horizonte avaliativo, para poderem ter alguma fiabilidade/fidelidade, ou são provas (ilusoriamente) de amplos objectivos avaliativos e de muito reduzida fiabilidade/fidelidade.
O argumento dos exames «bem feitos», como instrumento de defesa da generalização dos exames a todos os ciclos de ensino e a todas as disciplinas e com peso determinante na aprovação do aluno, é um mito. Um mito perigoso.