sexta-feira, 9 de abril de 2010

Fragmenti veneris diei

«De que é que trata a experiência?, perguntou Rosa. Qual experiência?, disse Amalfitano. A do livro pendurado, respondeu Rosa. Não é nenhuma experiência, no sentido literal da palavra, disse Amalfitano. Então porque é que está lá?, perguntou Rosa. Ocorreu-me de repente, disse Amalfitano, a ideia é de Duchamp, deixar um livro de geometria pendurado à intempérie para ver se ele apreende uma quantas coisas da vida real. Vais estragá-lo, disse Rosa. Eu não, disse Amalfitano, a natureza. Olha, tu estás cada dia mais louco, disse Rosa. Amalfitano sorriu. Nunca te tinha visto fazer uma coisa dessas a um livro, disse Rosa. Não é meu, disse Amalfitano. Tanto faz, disse Rosa, agora é teu. É curioso, disse Amalfitano, era assim que devia ser mas na verdade não o sinto como um livro que me pertença, além disso tenho a impressão, quase a certeza, de que não lhe estou a fazer mal algum. Então faz de conta que é meu e vai tirá-lo, disse Rosa, os vizinhos ainda vão pensar que estás louco. Os vizinhos, os que põem pedaços de vidro na parte de cima dos muros? Esses nem sequer sabem que nós existimos, disse Amalfitano, e estão infinitamente mais loucos do que eu. Não, esses não, disse Rosa, os outros, os que podem ver perfeitamente bem o que se passa no nosso pátio. Algum deles te incomodou?, perguntou Amalfitano. Não, respondeu Rosa. Então não há problema, disse Amalfitano, não te preocupes com parvoíces, nesta cidade estão a acontecer coisas muito mais terríveis do que pendurar um livro de um cordel. Uma coisa não tira a outra, disse Rosa, não somos bárbaros. Deixa o livro em paz, faz de conta que ele não existe, esquece-o, disse Amalfitano, tu nunca te interessaste por geometria.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 231-232.